De início, este artigo tem como objetivo analisar a viabilidade jurídica da participação de cooperativas de crédito como credoras em processos de recuperação judicial, com foco nos créditos decorrentes de operações de crédito concedidas a empresas recuperandas, à luz da legislação brasileira, em especial as Leis nº 11.101/2005 e nº 5.764/1971.
Este estudo tem como objetivo analisar a definição legal de cooperativas, com enfoque na distinção em relação às cooperativas de crédito. Serão examinados o papel específico dessas entidades no sistema financeiro nacional, a equiparação a instituições financeiras e as consequências jurídicas decorrentes dessas classificações.
A Lei nº 11.101/2005, conhecida como Lei de Recuperação de Empresas e Falência, estabeleceu um marco legal para a resolução de crises empresariais no Brasil, prevendo os mecanismos legais para possibilitar ao Judiciário lidar com empresas necessitando de soerguimento, possuindo como objetivos principais a preservação da atividade empresarial, a garantia à manutenção dos empregos e a promoção da satisfação dos débitos dos credores.
Em seu Artigo 2º, inciso II, a normativa em referência aduz que: “esta lei não se aplica a instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores”.
Um dos grandes equívocos jaz na utilização do Artigo 2º da Lei nº 11.101/2005 para justificar que as cooperativas de crédito não se sujeitam à recuperação judicial, uma vez que o seu conteúdo deverá ser interpretado de uma forma menos ampla, pois a intenção do legislador não foi essa.
O intuito do legislador quando da introdução destes regramentos no texto legal foi para deixar claro que as cooperativas de crédito, como regra geral, estão afastadas do regime de insolvência, uma vez que tais entidades não são agentes econômicos organizados sob a forma de empresa, ou seja, não há possibilidade jurídica, pelo menos neste momento, de uma cooperativa crédito ajuizar uma ação de recuperação judicial, todavia, é necessário apontar que a lei não traz qualquer vedação legal para barrar a cooperativa de crédito de se tornar um credor dentro de um processo de reestruturação.
Neste sentido, o § 13 do Artigo 6º da Lei nº 11.101/2005, introduzido pela Lei nº 14.112/2020, deixa claro que: “não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do art. 79 da Lei nº 5.7c4, de 1c de dezembro de 1971, consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica”.
Além do Artigo 2º, inciso II, é muito comum que se utilize, também, o § 13 do Artigo 6º da mesma lei para justificar que as cooperativas de crédito não se sujeitam ao regime concursal de um processo de soerguimento, todavia, entende-se que as interpretações neste sentido estão ocorrendo de forma muito ampla.
De acordo com a Lei nº 5.764/1971, cooperativa é uma sociedade de pessoas com forma e natureza jurídica próprias, constituída para prestar serviços aos seus associados, sem objetivo de lucro. Estas entidades, portanto, não se sujeitam ao regime concursal conforme a lei, pois os contratos celebrados entre os cooperados – fornecimento de bens e serviços, armazenamento e comercialização de produtos, compartilhamento de recursos e infraestrutura etc. – realmente travestem-se da forma mais pura de ato cooperativo, pois nestes casos o cooperado está utilizando da infraestrutura e benefícios que a cooperativa oferece, visando não só o seu próprio desenvolvimento, como também o desenvolvimento da coletividade.
A interpretação mencionada no parágrafo anterior pode ser visualizada pelo caput do Artigo 79 da Lei nº 5.764/1971, ao qual traz em seu bojo: “denominam-se atos cooperativos os praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associados, para a consecução dos objetivos sociais”. Todavia, para o caso em baila, uma melhor ênfase deverá ser dada ao parágrafo único do artigo em referência, que aduz que: “o ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria”.
Conforme a melhor definição, operação de mercado é o conjunto de transações de compra e venda de bens e serviços, que ocorrem em um ambiente regulado. As principais operações de mercado são: (I) operações de mercado aberto – transações de compra e venda de títulos públicos, realizados pelo Banco Central; (II) mercado a termo – operações de compra e venda de derivativos, com preço à vista acrescido de juros e liquidação fixada em data futura; (III) operações de mercado de opções – operações que representam um contrato que dá ao seu titular o direito de comprar ou de vender um determinado ativo por um valor determinado em uma data específica do futuro; e (IV) operações financeiras – transações que envolvem a movimentação de recursos monetários, como a compra e venda de ativos, empréstimos e investimentos.
Em respeito à corrente que entende o caso de forma diversa, mas se for feita uma análise pormenorizada das informações aqui apresentadas, não há como se manter a justificativa de que as cooperativas de crédito praticam atos cooperados, ante expressa vedação legal que determina que as operações de mercado (operações financeiras) não são atos cooperados. Desta forma, como uma cooperativa de crédito se difere da cooperativa regular (esta última, sim, pratica atos cooperados), repita-se, não há qualquer razão para manter a linha de entendimento de que não se sujeitam ao concurso de credores em um processo recuperacional.
Para melhor espelhar o raciocínio até o momento, será preciso citar como exemplo o objeto social da Cooperativa de Crédito, Poupança e Investimento Rio Paraná – Sicredi Rio Paraná, que no Artigo 1º do seu Estatuto Social assim dispõe: “a Cooperativa de Crédito, Poupança e Investimento Rio Paraná – Sicredi Rio Paraná PR/SP constituída na Assembleia Geral de 21 de novembro de 1S88 é uma instituição financeira, sociedade cooperativa, sem fins lucrativos e de responsabilidade limitada, regida pela legislação vigente e por este Estatuto Social (…)”.
E, ao ler o Artigo 3º do mesmo Estatuto Social, conclui-se que o objeto social da Sicredi Rio Paraná é: “a Cooperativa tem como objeto social a realização de todas as operações ativas e acessórias, próprias de cooperativas de crédito, o estímulo à formação de poupança e a administração de recursos pertinentes à concessão de empréstimos aos seus associados, podendo, inclusive, obter recursos financeiros de fontes externas (…)”.
Para qualquer lado que se analise o Estatuto Social da cooperativa de crédito acima mencionada, não há como afastar a clara natureza financeira e de obtenção de lucro das suas operações.
Por outro lado, também a título exemplificativo, de bom alvitre mencionar o objeto social da Cooperativa Central Aurora de Alimentos, que em seu Artigo 2º assim dispõe: “a cooperativa tem por objeto: a) A industrialização de produtos alimentares derivados do abate de suínos e aves, inclusive os subprodutos; b) A industrialização de produtos alimentares derivados de frutas, hortaliças e leguminosas, inclusive os subprodutos; c) A industrialização de produtos derivados de leite, inclusive os subprodutos; d) A industrialização de produtos derivados de bovinos e/ou peixes, inclusive os subprodutos; e) A industrialização de produtos derivados de soja, inclusive os subprodutos; f) A fabricação de massas alimentícias, produtos de panificação, doces e gelatinas; g) A fabricação de rações, concentrados e demais insumos para alimentação animal; h) A exploração agropecuária de suínos e pintos de um dia; i) Fomentar, propiciando meios e participando, o desenvolvimento, pelas associadas, das atividades de produção agropecuária através de um sistema de produção verticalizado; j) Depositar em armazéns os produtos agrícolas entregues pelas filiadas; k) Envase de água; l) Comercializar, em nível de atacado e varejo, os produtos acima produzidos; m) Comercializar a produção das cooperativas associadas; n) Prestação de serviços a cooperados e não cooperados; o) Transporte rodoviário de carga”.
Ao analisar o objeto social da cooperativa citada no parágrafo anterior, verifica-se que as suas atividades estão diretamente ligadas à industrialização, comercialização e prestação de serviços no setor agropecuário e alimentício, diferentemente da cooperativa de crédito também mencionada anteriormente, cujo foco está na realização de operações financeiras.
Após sanar tais considerações, será preciso explanar que as cooperativas de crédito também são reguladas pela Lei nº 5.764/1971, todavia, têm seu funcionamento supervisionado pelo Banco Central do Brasil e são equiparadas a instituições financeiras nos termos da Lei nº 4.595/1964, que no § 1º do Artigo 18 assim aduz: “além dos estabelecimentos bancários oficiais ou privados, das sociedades de crédito, financiamento e investimentos, das caixas econômicas e das cooperativas de crédito ou a seção de crédito das cooperativas que a tenham, também se subordinam às disposições e disciplina desta lei no que for aplicável, as bolsas de valores, companhias de seguros e de capitalização, as sociedades que efetuam distribuição de prêmios em imóveis, mercadorias ou dinheiro, mediante sorteio de títulos de sua emissão ou por qualquer forma, e as pessoas físicas ou jurídicas que exerçam, por conta própria ou de terceiros, atividade relacionada com a compra e venda de ações e outros quaisquer títulos, realizando nos mercados financeiros e de capitais operações ou serviços de natureza dos executados pelas instituições financeiras”.
Inclusive, a mesma lei também disciplina que as cooperativas de crédito se subordinam à fiscalização do Banco Central, conforme se vislumbra do caput do Artigo 55, vejamos: “ficam transferidas ao Banco Central da República do Brasil as
atribuições cometidas por lei ao Ministério da Agricultura, no que concerne à autorização de funcionamento e fiscalização de cooperativas de crédito de qualquer tipo, bem assim da seção de crédito das cooperativas que a tenham”, o que reforça a natureza essencialmente financeira das cooperativas de crédito, diferenciando-as, significativamente, das demais modalidades cooperativistas.
A partir da análise jurídica aqui realizada, resta claro que as operações realizadas por cooperativas de crédito não se confundem com os atos cooperativos típicos das demais cooperativas, uma vez que envolvem a concessão de crédito, captação de recursos e outras operações próprias de instituições financeiras, caracterizando-se, assim, como operações puramente de mercado.
Portanto, diante da constante evolução do direito e da necessidade de interpretação sistêmica da legislação, este artigo é concluído sob a visão de que as cooperativas de crédito, apesar de possuírem uma estrutura societária cooperativa, operam essencialmente como instituições financeiras, estando sujeitas à regulamentação do Banco Central e às disposições da Lei nº 4.595/1964, não havendo qualquer fundamentação legal, principalmente na Lei de Recuperação e Falências, que as impeça de figurar como credores concursais nos processos de soerguimento.